O Som que Desperta os Mortos
O teatro abandonado, de pedra negra e colunas corroídas, guardava um silêncio tão profundo que parecia preso no tempo. As janelas, cobertas por vidros quebrados e poeira, filtravam a luz em feixes tímidos. Ninguém entrava ali. Ninguém queria perturbar o que dormia.
Adrian, um jovem violinista de espírito inquieto, não acreditava em lendas. Mas acreditava em música. E foi ela quem o levou até aquelas portas pesadas.
Ao entrar, sentiu o cheiro de veludo velho e madeira úmida. No centro do palco, ergueu o violino e deixou que as notas ecoassem.
Era uma melodia antiga, com um nome que ele mal ousava pronunciar: Notturno della Rosa. Ele não sabia que a composição havia nascido de um amor e terminado em sangue.
No camarote mais alto, uma sombra moveu-se.
Lídia. A rosa pálida da meia-noite. Uma vampira que, há séculos, havia escolhido o exílio. Dormia entre cortinas rasgadas e candelabros apagados, até que aquelas notas invadiram seus sonhos e despertaram uma sede esquecida — não apenas por sangue, mas por algo mais quente e perigoso.
A Peça Incompleta
Na terceira noite, Adrian retornou. O frio da madrugada parecia menos cruel do que a distância que o separava daquele teatro. Ele tocava não só para ouvir sua própria música, mas para sentir aquela estranha presença que, embora invisível, o observava.
Foi então que ela desceu das sombras.
Seus pés nus pousaram sobre o palco como um sussurro. Sua pele refletia a luz fraca como mármore sob o luar. Um vestido negro moldava seu corpo, mas parecia pronto para ceder a qualquer movimento.
— Continuar… a tocar — pediu, e sua voz era tão doce quanto ameaçadora.
Adrian deveria ter fugido. Em vez disso, tocou para ela. E, a cada compasso, Lídia se aproximava. Seu perfume o envolvia, denso e inebriante. Quando seus dedos roçaram a mão dele, o som do violino quase se quebrou junto às cordas.
No final da peça, ela o olhou como se pudesse atravessar sua alma. Seus lábios chegaram tão perto que o ar entre eles queimou. E, antes de desaparecer na penumbra, tocou levemente seu pescoço com a ponta dos dedos. Adrian sentiu que aquele gesto tinha sido uma promessa.
Variações da Sede
As noites seguintes tornaram-se um ritual. Adrian chegava, tocava, e ela aparecia. Mas agora, entre as notas, havia palavras baixas, sorrisos lentos, toques demorados. Ele sentia o frio de sua pele, mas também um calor inexplicável quando seus olhares se encontravam.
Lídia era cuidadosa. Nunca se aproximava demais, nunca tocava por muito tempo. Mas sua presença já era um convite perigoso.
Certa noite, enquanto ele tocava, ela se colocou atrás dele, guiando suas mãos no arco. Sua respiração roçava o pescoço dele, e Adrian fechou os olhos, sentindo que cada centímetro de seu corpo respondia ao dela.
Havia algo hipnótico naquela ligação. Ele não a temia mais — pelo contrário, ansiava por sua presença. Ela não era apenas um mistério; era um vício.
Mas o passado de Lídia não dormia.
O criador do Notturno della Rosa, um amante que ela havia perdido (ou destruído), retornava. Não como homem, mas como espectro. E vinha para reclamar o que acreditava ainda ser seu: a música… e a mulher.
Último Ato
A noite final começou como todas as outras. Adrian tocava, Lídia o observava. Mas, de repente, o ar ficou pesado. A temperatura caiu. As cordas do violino vibraram sozinhas, como se outra presença estivesse ali.
Das sombras, uma figura surgiu — alta, pálida, com olhos que ardiam de fúria. Ele não falava, mas seu olhar dizia tudo.
A disputa não foi feita apenas de palavras ou golpes. Foi um confronto de presenças, de vontades. Espelhos estilhaçaram-se, cortinas foram rasgadas, o palco tornou-se um campo de batalha silenciosa e feroz.
Em meio ao caos, Lídia agarrou a mão de Adrian. Seus olhos não pediam, ordenavam:
— Fique comigo.
Ele ficou.
Quando o primeiro raio de sol tocou as janelas quebradas, só restavam dois vultos entre as cortinas vermelhas. O Notturno della Rosa não estava mais incompleto. Era um concerto terminado com sangue, música e desejo contido.
Uma nova peça havia começado.
Clara Noir – Blog Noites Proibidas