Capítulo 1 – Cidade de Névoas
Por Clara Noir
A cidade de Marienstadt acordava lentamente. A névoa descia dos montes como um lençol pálido, cobrindo os telhados vermelhos e os sinos da igreja que ecoavam em ritmos suaves. O bonde elétrico chiava entre as ruas estreitas, e o aroma de pão fresco escapava das padarias com janelas sempre embaçadas.
Greta Hartmann atravessava a praça com a elegância habitual: saia midi azul, sapatos baixos de couro preto e um sobretudo cinza que moldava sua postura firme. Na bolsa, o fichário da biblioteca e um romance de Colette, ainda com marcador na metade.
A biblioteca central de Marienstadt era um prédio antigo, de dois andares, paredes em pedra clara e grandes janelas em arco. O piso de madeira rangia sob os passos dos frequentadores mais apressados. Na entrada, a recepcionista Fräulein Berta — uma senhora viúva de fala rápida e dedos manchados de tinta — acenou:
— Pontual como um relógio suíço, Fräulein Hartmann!
— Uma biblioteca exige disciplina, Berta — respondeu Greta com um sorriso discreto.
Na sala dos fundos, Greta acendia as luzes uma a uma. O cheiro de madeira envelhecida e papel antigo era uma espécie de perfume que só ela apreciava com verdadeira devoção. Tudo ali tinha um lugar. E ela também.
—
Peter esperava por ela ao meio-dia com dois cafés numa bandeja de lata, sentado no banco da praça onde sempre almoçavam juntos. Ele usava um paletó bege e óculos redondos, o cabelo arrumado com creme. Ao vê-la, sorriu:
— Trouxe seu favorito. Com canela e pouco açúcar.
— Obrigada, meu amor — disse ela, sentando-se ao lado dele.
Conversaram sobre alunos, sobre o discurso do novo prefeito e sobre o aniversário da irmã dele. Ela ouvia com atenção, fazia perguntas, sorria. Mas parte dela… observava o tempo. O modo como o vento agitava os galhos do carvalho no meio da praça. As coisas que ele não dizia. E, principalmente, o que ela mesma não sabia nomear.
Peter segurou sua mão.
— Parece pensativa.
— Não. Só… observando a cidade.
Ele a beijou no alto da cabeça.
— Você tem olhos que enxergam além dos livros, Greta.
Ela sorriu. Mas por dentro, havia uma dúvida que crescia sem forma.
Não era sobre Peter. Era sobre ela.
—
À tarde, de volta à biblioteca, um grupo de alunos universitários chegou para uma pesquisa. Greta organizava os fichários quando ouviu a voz dele pela primeira vez.
— Desculpe, Fräulein… onde ficam os exemplares raros de poesia expressionista?
Ela virou-se. O rapaz era alto, magro, com cabelos castanho-claros um pouco desalinhados, e olhos que pareciam escurecer à medida que observavam.
— Ala dos fundos, corredor B, prateleira superior. Você encontrará Trakl, Benn, e talvez algo de Rilke mal impresso.
Ele sorriu, impressionado.
— Obrigado… senhorita?
-Hartmann. Bibliotecária.
— Friedrich Bauer — respondeu ele, tocando a aba do chapéu. — Primeiro semestre de Letras. É completamente perdido.
Ela quase riu.
— A poesia costuma fazer isso com os homens.
Friedrich hesitou antes de seguir.
— Espero me perder mais vezes por aqui.
Greta continuou organizando os fichários, mas seu coração batia em um ritmo novo, quase imperceptível. Não era emoção, nem desejo. Ainda. Era apenas um aviso, um chamado ao fundo de si mesma.
—
À noite, enquanto Peter falava sobre um novo artigo acadêmico, Greta ouvia, sentada no sofá com as pernas encolhidas. Ele servia chá, explicava datas, fazia planos para o próximo verão em Colônia.
E ela o amava. Amava a paz que ele trazia.
Mas dentro dela, começava a nascer uma outra mulher.
Não mais satisfeita com silêncio e chá.
Continua…
Capítulo 2 – Palavras Não Ditas
Por Clara Noir
O convite chegou com bilhete perfumado e fita dourada: jantar na casa de Klaus e Marianne, velhos amigos de Peter. Greta leu com calma, mas sabia que aceitaria — era o tipo de evento que mantinha as aparências sociais intactas e o círculo em constante movimento.
Naquela noite, ela vestiu um conjunto verde-musgo, discreto, elegante. Peter a elogiou ao vê-la sair do quarto.
— Está ainda mais bonita do que no nosso primeiro encontro.
Ela sorriu e ajeitou o colar de pérolas.
— E você, o mesmo cavalheiro meticuloso de sempre.
—
A casa dos amigos ficava em uma colina. O portão de ferro trabalhado se abria para um jardim geométrico, e as janelas brilhavam com luz âmbar e cortinas de renda.
Lá dentro, Greta cumprimentou os presentes com um sorriso polido. Havia riso, música clássica no rádio e taças tilintando. Marianne, sempre efusiva, a tomou pelo braço.
— Querida, ouvi dizer que você coordena sozinha mais de vinte mil volumes! — exclamou. — Não sente falta de algo mais… vivo?
Greta respondeu com doçura:
— Cada livro tem seu próprio coração, Marianne. Eu apenas escuto as batidas.
A mulher riu, sem entender. O marido, Klaus, brindou:
— À bibliotecária mais culta e mais enigmática de Marienstadt!
Peter observava com orgulho. Falava com os outros homens sobre seus alunos, as reformas no prédio da universidade, as dificuldades em manter os jovens atentos.
Mas Greta, ali, bebia vinho devagar e olhava pela janela, onde a neblina engolia os contornos da rua. Sentia-se deslocada. Não infeliz — apenas levemente deslocada, como se vivesse num romance cuja protagonista não sabia mais se seguia o enredo previsto.
—
Na biblioteca, os dias seguiam calmos. Friedrich reaparecia com frequência, sempre com alguma desculpa literária.
— Fräulein Hartmann, há algum acervo de cartas do expressionismo? — perguntou certo dia, inclinando-se levemente sobre o balcão.
Greta, sem levantar os olhos do fichário:
— O senhor Bauer está fazendo um curso ou montando uma coleção particular?
Ele sorriu, mãos nos bolsos, com aquele ar tranquilo de quem não forçava nada.
— Talvez esteja só tentando entender por que certas palavras nos mudam por dentro.
Ela ergueu os olhos.
— As palavras não mudam. Elas revelam o que já existe.
Friedrich ficou em silêncio por um instante, como se gravasse aquilo na memória.
— Então espero que revelem que não sou tão pretensioso quanto pareço.
Greta disfarçou um leve sorriso. Ele era educado. Nunca se aproximava demais. Mas suas palavras sempre deixavam algo no ar — um rastro de perfume sem nome.
—
No sábado, Greta saiu para comprar pão. O mercado era simples, com vitrines de vidro, chão de ladrilho branco e cheiro de canela. Encontrou a jovem Caroline, aluna de Peter, no caixa.
— Fräulein Hartmann! — disse a moça, animada. — O professor Peter nos mostrou uma foto sua no piquenique da universidade. Todos comentaram como ele tem sorte!
Greta corou.
— Ele é um homem gentil.
— E apaixonado, todos sabem. É bonito ver isso hoje em dia.
Greta agradeceu, sorriu e caminhou de volta com a sacola nos braços. Mas o elogio ficou ecoando. Paixão. Sorte. Bonito.
Por que aquilo lhe doía um pouco?
—
À noite, ao jantar com Peter, ela se sentia confortavelmente aquecida pela presença dele. Conversaram sobre a leitura que fariam juntos no domingo. Ele lhe trouxe um livro novo de poesia francesa, encadernado com fita de cetim azul.
— Achei que você gostaria deste. É sensível, mas… estranho. Como você.
Ela sorriu e o beijou nos lábios.
— Obrigada, meu amor.
Mas ao deitar-se, ao seu lado, o pensamento se voltou brevemente a Friedrich. E a sensação de que havia algo por dizer.
Algo que ainda não tinha nome.
Algo que crescia entre as palavras não ditas.
Continua…
Capítulo 3 – Ecos em Silêncio
Por Clara Noir
A chuva começou ainda de madrugada. Gotas finas, persistentes, que lavavam os telhados de Marienstadt com paciência e melancolia. O vidro da janela da cozinha embaçava, e Greta passava o dedo em círculos, desenhando sem perceber uma espiral.
Peter, já vestido para a aula, passou a mão em seus cabelos com ternura.
— Quer que eu te leve de carro hoje?
Ela balançou a cabeça.
— Gosto de caminhar na chuva. Faz o mundo parecer menos rígido.
Ele sorriu, pegou sua maleta e, antes de sair, beijou-a no alto da cabeça.
— Então leve guarda-chuva. Você não é feita de papel, mas… não quero você resfriada.
—
A biblioteca, naquela manhã, era mais escura. As janelas tremiam com o vento, e a luz das arandelas projetava sombras alongadas entre as estantes. O cheiro do papel úmido misturava-se ao da madeira molhada, e o ambiente parecia flutuar num tempo fora do tempo.
Greta acendeu as luzes uma a uma. Vestia um suéter cinza-chumbo por cima da blusa de gola branca. A saia roçava-lhe os joelhos, e o coque estava mais frouxo que o habitual. Era como se a chuva houvesse dissolvido parte de sua rigidez.
Friedrich chegou pouco antes do meio-dia. Estava encharcado, sem guarda-chuva, com os cabelos grudados à testa e os livros protegidos dentro do casaco.
— Achei que só os loucos saíssem sem abrigo num dia assim — disse ela, sem olhar diretamente para ele.
— Talvez eu seja só alguém que precisava respirar um pouco de caos.
Ela ergueu os olhos. Ele estava ali, parado, as mãos segurando os livros como se fossem frágeis demais para o mundo.
— Tem café na sala dos funcionários — disse ela, após um momento de silêncio. — Venha. Você parece um poema mal impresso.
Ele sorriu, e os dois seguiram para a pequena sala nos fundos.
—
Lá dentro, Greta acendeu o fogareiro e serviu o café em duas canecas desbotadas. O barulho da chuva contra a janela preenchia o silêncio entre eles como um terceiro personagem.
— Você sempre foi assim? — ele perguntou, por fim.
— Assim como?
— Calma por fora, e cheia de tormentas nos olhos.
Ela encarou-o com surpresa, depois desviou o olhar.
— É só a forma que encontrei de não quebrar.
Friedrich se aproximou, sentando-se à mesa em frente a ela. Os livros empilhados entre os dois eram como uma fronteira invisível.
— E você? — ela perguntou, de volta. — Sempre tão… perspicaz?
— Não. Só com você. Com você, tudo parece mais nítido. Até o que dói.
Ela não respondeu. Mas bebeu um gole do café como se fosse vinho, deixando que o calor descesse devagar pela garganta.
—
Quando a chuva apertou, ele ficou mais tempo do que o usual. A biblioteca estava vazia, e os passos ecoavam nos corredores.
Greta organizava livros no andar de cima quando o encontrou na seção de Filosofia, de pé, lendo Schopenhauer em silêncio. Aproximou-se devagar.
— Um homem que acreditava que o amor era só ilusão — comentou ela.
— E, ainda assim, escreveu com a paixão de quem foi ferido por ele.
Ela ficou ao lado dele por um instante. Tão perto que sentia o cheiro do cabelo ainda úmido, o calor que vinha da pele.
Ele a olhou.
— Você já amou alguém a ponto de se perder?
Greta piscou lentamente.
— Talvez esteja amando agora. Ou talvez esteja apenas me encontrando.
Não disseram mais nada.
Mas quando ele desceu as escadas mais tarde, ao fim da tarde, ambos sabiam que algo havia mudado.
—
À noite, Peter preparou sopa de batatas. Estava animado, contando sobre um aluno que confundira Napoleão com Nietzsche numa redação.
— E você, como foi seu dia? — perguntou ele, servindo-a.
— Chuvoso. Mas tranquilo.
Ele sentou-se ao lado dela, pegando sua mão por cima da toalha.
— Às vezes penso em como nossa vida é calma. E agradeço por isso.
Greta sorriu, apertando levemente seus dedos.
— A calmaria também tem sua beleza.
Mas naquela noite, enquanto lia no sofá, ela lembrou-se de Friedrich na sala do café. Do silêncio que falaram juntos. Do jeito que ele a olhava como quem vê uma chama acesa por dentro da chuva.
E sentiu algo que ainda não sabia nomear.
Mas que pulsava cada vez mais forte.
E mais próximo.
Continua…
Capítulo 4 – Entre Livros e Olhares
Por Clara Noir
O mês de novembro parecia esticado por dentro de um relógio antigo, com horas lentas, longas, e uma luz amarelada que cobria tudo. Greta acordava cedo, como sempre, tomava chá de hibisco com mel e lia três páginas do romance da semana antes de sair. Peter deixava flores frescas sobre a mesa do café — às vezes lírios, às vezes lavanda.
Naquela manhã, deixou um pequeno bilhete preso no espelho:
“Para a mulher que me dá paz, todos os dias. — P.”
Greta sorriu ao ler. A paz. Sim, era isso que Peter lhe oferecia. Mas agora, havia dentro dela outra presença — como um eco que não se calava.
—
Na biblioteca, Friedrich já estava à mesa com livros abertos, cercado de anotações. Ele levantou os olhos ao vê-la passar e sorriu discretamente, sem qualquer ousadia.
— Encontrei aquele trecho de Rilke que você mencionou — disse ele, erguendo o caderno.
Ela se aproximou, ainda de luvas. Sentou-se ao lado dele. O caderno estava aberto, e sua caligrafia era firme, elegante.
“Pois há um lugar onde as coisas se calam e o coração se ouve.”
Ela tocou o canto da folha.
— É bonito. Mas inquietante.
— Como você.
Ela o encarou. Por um instante, o mundo ao redor pareceu desaparecer: o som das páginas viradas, os passos distantes, o chiado da chuva contra as vidraças.
— Você precisa tomar cuidado com o que diz — respondeu ela, em voz baixa.
— E você com o que sente.
Greta levantou-se, os olhos fixos no dele por um segundo a mais do que deveria. Depois, virou-se e caminhou para o acervo, o coração batendo forte. Estava acostumada a controlar seus desejos, suas palavras. Mas Friedrich parecia conhecer cada fresta por onde a razão escorregava.
—
À noite, jantaram em casa de forma simples. Peter preparou ovos mexidos e torradas com queijo, rindo ao contar sobre o bilhete anônimo deixado por um aluno elogiando suas gravatas.
— Acho que estou formando intelectuais românticos — brincou.
Greta riu. Ele a puxou para o sofá, aconchegando-a sob a manta.
— Sabe o que eu gosto em você?
— Diga.
— Você nunca se perde. Parece sempre saber exatamente onde está.
Ela não respondeu. Apenas deitou a cabeça sobre o peito dele e fechou os olhos.
Mas dentro de si, estava se perdendo. E profundamente.
—
Dois dias depois, Friedrich aguardava no corredor da sessão de livros franceses. Ela o viu de longe e hesitou antes de se aproximar.
— Posso te fazer uma pergunta? — disse ele, sem rodeios.
— Depende da pergunta.
— Alguma vez você já quis dizer algo e não disse, só pra manter o mundo calmo demais?
Ela sentiu um frio na espinha.
— Constantemente.
Ele deu um passo à frente. Estavam agora perto o suficiente para que o perfume suave de Greta, de chá preto e lavanda, flutuasse entre eles.
— Eu gostaria que você soubesse que… não pretendo confundir sua vida.
— Então por que me olha como se já estivesse dentro dela?
Silêncio.
Os olhos de Friedrich eram um convite e uma despedida ao mesmo tempo. Ele não respondeu. Apenas pegou um livro da prateleira, entregou a ela — “As Ondas”, de Virginia Woolf — e saiu sem dizer mais nada.
Greta ficou ali, com o livro entre as mãos, e os dedos ainda quentes do toque não dado.
—
Naquela noite, sozinha no banheiro, Greta tirou lentamente o vestido. Observou-se no espelho. A mesma mulher de sempre. E, no entanto, uma outra.
Lembrou-se das palavras de Friedrich, dos olhos dele.
Lembrou-se do bilhete de Peter no espelho.
E sentiu-se dividida entre dois mundos — um que lhe dava chão, e outro que lhe oferecia vertigem.
Por ora, ficou ali. Entre livros e olhares.
Onde o desejo ainda não tinha nome, mas já sabia o caminho.
Continua…
Capítulo 5 – Um Chá com Tempestade
Por Clara Noir
A tempestade começou no fim da tarde, sem avisar. O céu escureceu de repente, e o vento empurrou os galhos das árvores com força quase selvagem. Greta já deixava a biblioteca quando sentiu os primeiros pingos. O guarda-chuva virou ao contrário, e ela correu para a única proteção próxima: o toldo vermelho desbotado de um café discreto, quase escondido entre uma floricultura e uma papelaria.
Ela nunca havia entrado ali. As janelas eram pequenas, cobertas por cortinas rendadas. Um sino antigo tilintou quando empurrou a porta.
— Boa tarde — disse uma voz suave atrás do balcão.
— Boa tarde… está terrível lá fora — respondeu ela, tirando o casaco molhado.
As mesas estavam quase todas vazias, exceto por um jovem de suéter vinho, lendo junto à janela embaçada.
Friedrich.
Levantou os olhos e seus rostos se cruzaram com surpresa e um leve constrangimento. Ele se levantou de imediato.
— Fräulein Hartmann… por favor, sente-se. Está encharcada.
Ela hesitou apenas um instante.
— Obrigada. Parece que hoje só restaram os solitários da cidade.
Ele riu com delicadeza, empurrando para ela uma xícara já pronta.
— Chá de maçã com canela. Pedi outro antes de você chegar. Coincidência ou pressentimento, não sei.
Ela envolveu a xícara com as mãos. O calor do líquido pareceu alcançar algo mais profundo que a pele. Ficaram em silêncio por um momento, observando a chuva escorrer pela vidraça.
— Às vezes penso que a chuva só vem pra nos obrigar a parar — disse ele.
— Ou pra colocar as máscaras pra secar — completou ela, num sussurro.
Friedrich a olhou com mais intensidade, mas ainda com respeito. Seus olhos estavam mais claros sob a luz fraca do abajur.
— Posso fazer uma pergunta honesta?
— Depende da honestidade — disse ela, mas havia um sorriso contido nos lábios.
— Por que você me permite chegar tão perto… se sempre se afasta?
Ela parou. Os dedos tensos ao redor da xícara. Olhou para a chuva. Para ele. E de volta à própria respiração.
— Porque eu não sei mais quem eu sou quando estou perto de você.
Friedrich encostou os cotovelos sobre a mesa, aproximando-se levemente. A voz dele era quase inaudível:
— Talvez você esteja se descobrindo.
— Talvez eu esteja traindo algo que não sei nomear.
— Você não está traindo ninguém. Está se libertando da história que contaram sobre você.
Ela abaixou os olhos. As palavras dele vinham como pontas afiadas e doces ao mesmo tempo.
— Eu tenho alguém que me ama — disse ela, firme.
— E eu não quero te fazer escolher — respondeu ele. — Mas não posso fingir que não vejo o que existe aqui. Entre nós.
O silêncio voltou. Mas dessa vez era denso. Quente. Carregado.
Greta respirou fundo e levantou-se.
— A chuva passou. Preciso ir.
Friedrich não a impediu. Apenas disse, com a voz grave:
— Só saiba que quando quiser me encontrar… eu estarei exatamente onde você me deixou. Esperando você se encontrar.
Ela saiu sem olhar para trás, o coração batendo como um tambor abafado sob a pele.
—
Peter a esperava em casa com a lareira acesa. Tinha preparado chocolate quente e desenhado corações com açúcar sobre os biscoitos.
— Eu senti sua falta hoje — disse ele, com um sorriso calmo. — Te imaginei entre livros e trovões.
Ela o abraçou com força, apoiando o rosto em seu peito. E chorou em silêncio.
Não de culpa. Mas de medo.
Porque agora ela sabia:
o que sentia não era passageiro.
—
Continua…
Capítulo 6 – Fronteiras
Por Clara Noir
Greta passou os dois dias seguintes evitando as ruas que levavam à biblioteca. Pediu licença à diretora e ficou em casa organizando os armários, limpando as cortinas, lendo cartas antigas da família. Peter, encantado com sua presença constante, tentava estender esses momentos com passeios ao mercado, jogos de xadrez e pequenos agrados ao entardecer.
Na noite de quarta-feira, ele preparou vinho quente com laranja e cravo. Colocou um disco de jazz francês na vitrola, e a convidou para dançar no meio da sala.
— Há quanto tempo não fazemos isso? — disse ele, rindo.
Greta hesitou, depois cedeu. Deixou-se conduzir devagar. O corpo dele era familiar, o calor que vinha das mãos era real. Mas algo dentro dela estava diferente — como se, ao se deixar tocar, outra parte reagisse com mais fome, mais entrega.
Peter percebeu.
— Você está… diferente — murmurou, beijando-lhe o pescoço. — Está mais… intensa.
Ela o olhou nos olhos. E, em vez de negar ou suavizar, apenas segurou-o pela nuca e o beijou com mais firmeza do que o usual. Ele reagiu, surpreso, e deixou-se levar.
Fizeram amor no sofá, com a luz da lareira projetando sombras nos rostos. Greta estava ali, entregue — mas não apenas a ele. Estava entregue à possibilidade de desejar, à liberdade de sentir. Pela primeira vez, ela conduziu. Montou sobre ele com ritmo e olhos abertos, até que ele dissesse seu nome com espanto, como quem descobre uma nova mulher sob o próprio teto.
Mais tarde, deitados juntos, Peter acariciava seu braço devagar.
— Eu não sei o que aconteceu hoje… mas foi lindo.
Greta apenas sorriu, com os olhos voltados para o teto.
Por dentro, era Friedrich quem tremia em suas lembranças. Não por ter feito amor com ele. Mas por tudo o que ainda não tinham vivido.
—
Na manhã seguinte, Greta voltou à biblioteca.
Friedrich não apareceu. Nem no outro dia. E nem no seguinte.
Ela fingia estar aliviada, mas a ausência dele ecoava como um espaço vazio em meio às prateleiras.
Conversou com alunos, atendeu telefonemas, revisou catálogos. Mas em cada canto, algo dele permanecia: a lembrança do tom de voz, o calor do olhar, o trecho do poema rabiscado na borda do caderno.
—
Num sábado à tarde, Caroline — aluna de Peter — passou pela biblioteca para devolver um romance.
— Fräulein Hartmann, soube que você leu As Ondas de novo… Friedrich comentou comigo no curso de literatura.
Greta tentou esconder o sobressalto.
— Ele está bem?
— Parece distraído. Mas muito inspirado. Ele recitou uma parte de Rilke em aula como se falasse com alguém que não estava ali.
Greta segurou o livro com mais força.
— Rilke tem dessas coisas.
— Vocês parecem ter conversas interessantes — disse Caroline, com um leve sorriso. — Ele tem algo… magnético, não tem?
Greta manteve o rosto impassível.
— Ele é um jovem inteligente.
Mas sentiu que a fronteira que tentava manter começava a rachar. Não por causa de Friedrich. Mas porque ela já não sabia onde terminava seu desejo e começava sua culpa.
—
À noite, sentou-se na poltrona do quarto e abriu um caderno novo. Tentou escrever. Tentou nomear o que sentia. Mas nada saía.
Foi ao espelho. Tirou a blusa devagar. A saia caiu como se escapasse de seus quadris por vontade própria.
Olhou para si mesma. Tocou os próprios seios, o ventre, os pulsos.
Era ela. Ainda era ela.
Mas algo estava sendo quebrado.
E não havia como recuar.
—
Continua…
Capítulo 7 – A Fresta
Por Clara Noir
A primavera chegava de mansinho, como um perfume esquecido que invade a casa sem bater à porta. As janelas da biblioteca ficavam abertas nas tardes mais quentes, e o cheiro das flores da praça atravessava os corredores silenciosos. Greta andava por ali como quem carrega um segredo no ventre — sentia seu corpo mais desperto, mais sensível, como se cada sensação fosse amplificada.
Na quarta-feira, Friedrich voltou.
Ela o viu de longe, entrando como sempre: silencioso, discreto, com os ombros ligeiramente tensos e uma pasta de couro apertada sob o braço. Ele a cumprimentou com um gesto contido da cabeça. E foi direto à ala de poesia, sem pedir ajuda.
Durante horas, manteve-se lá, escondido entre estantes, como um visitante fantasma.
Greta fingia não notar. Mas em cada prateleira que organizava, ouvia o som dos passos dele. Sentia quando ele passava pelo corredor. Percebia a respiração contida quando ele se aproximava — e recuava.
Até que, ao fim da tarde, enquanto ela arrumava livros no escadote de madeira, a base deslizou sutilmente. Não foi uma queda, apenas um susto. O suficiente para que Friedrich surgisse ao seu lado em um segundo.
— Cuidado — disse ele, segurando sua cintura.
Ela desceu, devagar, com as mãos ainda trêmulas. Ele a amparava pelos braços, o toque firme, quente, mas respeitoso. Quando ela já estava com os pés no chão, ele não a soltou imediatamente.
— Me desculpe — disse ele. — Eu não queria…
— Está tudo bem — respondeu ela, quase num sussurro.
Mas a pele dela ardia onde os dedos dele tocaram. Os olhos se encontraram. E, pela primeira vez, o silêncio entre eles não era vazio. Era denso. Quente. Vivo.
Ele soltou-a devagar, com os olhos ainda presos aos dela.
— Achei que talvez você não quisesse me ver mais.
Ela respirou fundo.
— Eu não sabia o que queria.
— E agora?
— Ainda não sei. Mas não consigo evitar sua presença… mesmo quando você não está.
Friedrich deu um passo para trás, respeitando os limites. Mas havia algo decidido no modo como a olhava agora. Como se dissesse: não vou forçar nada — mas também não vou recuar.
—
Naquela noite, Peter chegou mais cedo da universidade. Trazia flores amarelas e um bolo de maçã da padaria.
— Achei que você merecia um agrado — disse ele, beijando-lhe a bochecha.
Jantaram juntos. Conversaram sobre os planos para o verão. Ele sugeriu uma viagem a Lübeck, passeios pela costa.
— Você parece diferente, Greta — disse ele, servindo-lhe mais chá. — Está… mais viva.
Ela sorriu. Tocou a mão dele com carinho. E o beijou com doçura.
Depois, na cama, ele a abraçou por trás, os corpos encaixados, e ela permitiu. O toque dele era quente, familiar, seguro. Mas ao fechar os olhos, sentiu novamente os dedos de Friedrich em sua cintura. A firmeza. O calor. O tremor.
Não era culpa o que sentia.
Era uma fome nova.
E ela já não conseguia mais fingir que não existia.
—
Continua…
Capítulo 8 – Primeiro Gatilho
Por Clara Noir
A chuva caiu forte naquela tarde, densa como um véu espesso sobre a cidade. As luzes da biblioteca tremiam. Greta avisara aos funcionários que poderiam sair mais cedo, pois uma manutenção programada afetaria o prédio — algo com os disjuntores, nada sério.
Mas não esperava que Friedrich aparecesse.
— Vim devolver os livros. Não sabia da manutenção.
Ela sorriu, discreta.
— Está tudo bem. Pode ficar um pouco, se quiser. Mas sem luz artificial… teremos que confiar nos olhos e nas palavras.
Ele riu, ajeitando o casaco encharcado na cadeira.
A biblioteca estava praticamente vazia. O último funcionário fechou a porta lateral com um aceno. A tempestade aumentava lá fora. A energia caiu. Só o som da chuva preenchia os corredores.
Greta acendeu duas velas altas no salão de leitura. A luz tremeluzente dançava nas lombadas antigas, criando sombras nas prateleiras.
— Sente-se — disse ela, indicando a mesa central.
— Sinto que estou em um conto de Poe — brincou ele, puxando a cadeira.
— Talvez estejamos em um — ela respondeu, suavemente.
Sentaram-se frente a frente. Os olhos encontrando-se nas entrelinhas do silêncio.
— Por que me deixa ficar? — perguntou ele, após um tempo.
— Porque não tenho coragem de te mandar embora.
— E por que isso?
Ela sorveu o chá, olhando para o movimento da chama.
— Porque… quando você está perto, tudo em mim parece vivo. Até o que não deveria.
Ele a olhou com cuidado. Depois se levantou, caminhando até a estante. Tirou um livro com capa vermelha — Cartas a um Jovem Poeta.
— Posso ler um trecho?
Ela assentiu.
Friedrich leu em voz baixa:
“Talvez todas as coisas terríveis sejam, em seu mais profundo ser, algo que deseja ser amado.”
Greta sentiu a garganta apertar. A frase parecia dita diretamente a ela. Como se Rilke tivesse visto sua alma.
Ela levantou-se sem saber por quê. A vela estalou. A chuva engrossou. E então — como se o mundo parasse — ele caminhou até ela. Estavam a centímetros.
Não havia música. Não havia fala.
Só o som da chuva, o calor das velas, o cheiro de papel antigo e o batimento acelerado dos corações.
Friedrich estendeu a mão e tocou o rosto dela. Leve. Com reverência.
Ela não recuou. Mas seus olhos se fecharam.
E quando os lábios dele encostaram nos dela, não houve explosão — houve acolhimento. Como se enfim um silêncio fosse preenchido.
O beijo foi lento. Profundo. Como se os corpos se estudassem através da pele.
Os dedos dele encontraram a nuca dela. Os dela, o peito dele.
Ela afastou-se por um instante, ofegante.
— Eu… — tentou dizer.
— Eu sei — ele respondeu. — Eu também.
Ela o beijou de novo. Com mais sede. Com mais verdade.
As costas dela encontraram a parede da estante. A mão dele subiu pela curva da cintura, contornando o corpo com precisão e respeito. Ela arfava, sentindo cada linha do próprio corpo se reacender. Os seios sob a blusa estavam rígidos, os quadris buscavam-no. Ele não forçava. Tocava onde era permitido. Mas os dois sabiam que não havia mais retorno.
Ela o puxou pela camisa, colando o peito dele ao seu. Beijaram-se com a urgência de quem calou demais.
Até que ela sussurrou, entre os beijos:
— Eu… não posso. Aqui. Agora.
Ele encostou a testa na dela.
— Eu não vou te pedir nada. Já te tenho mais do que sonhei.
Ela sorriu, os olhos úmidos.
— Eu não sei quem sou com você.
— Você é você. Pela primeira vez.
Ela se afastou devagar. Tocou o rosto dele, os lábios, e sussurrou:
— Eu preciso ir.
— Eu sei.
Mas agora você sabe o caminho.
E então ela saiu. O coração em descompasso. O corpo ardendo.
Sabendo que, dali em diante, tudo havia mudado.
Porque o primeiro limite havia sido cruzado.
E não havia mais frestas.
Só portas abertas.
Continua…
Capítulo 9 – Entrega
Por Clara Noir
Peter havia viajado para uma conferência em Heidelberg. Ficaria dois dias fora. Antes de partir, deixou um beijo calmo no pescoço de Greta e disse, sorrindo:
— Cuide de você. E não se afogue em livros.
Ela prometeu que descansaria. Mas a promessa era uma corda frouxa.
Naquela noite, a cidade respirava um ar úmido e quente, típico do início de maio. Greta saiu sem destino definido, guiada por algo que não se nomeia, apenas se sente. As ruas estavam molhadas, e o som dos seus saltos ecoava nas pedras antigas.
Encontraram-se sem dizer hora ou lugar.
Friedrich estava parado na esquina do Café Rosenhof, como se soubesse que ela viria. Ele não sorriu. Apenas a olhou como se estivesse à sua espera desde o primeiro dia em que a viu.
— Eu… — começou ela.
— Não precisa dizer nada — interrompeu ele. — Só venha.
Ele a levou até uma pensão discreta nos fundos da praça, com cortinas grossas e corredores silenciosos. O quarto era pequeno, mas limpo. Uma única lâmpada amarelada pendia do teto, e havia flores secas num vaso de porcelana. A cama tinha lençóis claros e uma colcha dobrada aos pés.
Greta tirou o casaco devagar. Ele não a tocou de imediato. Apenas a observou.
— Eu não vim por impulso — disse ela.
— E eu não esperei por acaso.
Ficaram frente a frente. Por um momento, o silêncio parecia ter corpo.
Ela se aproximou e tocou o rosto dele com as duas mãos. Os olhos de Friedrich estavam marejados. Havia desejo, sim. Mas também reverência.
O beijo que veio foi diferente de todos os anteriores — lento, quente, profundo. Ele a segurou pela cintura com firmeza, sem urgência. Os corpos se procuravam como quem decora um caminho.
Greta tirou a blusa, revelando a pele clara e os seios nus, rígidos sob o frio suave da noite. Friedrich tocou-a com devoção, como quem toca algo sagrado. Beijou o colo, a curva entre os seios, o ventre.
Ela gemeu baixo, e os dedos tremeram ao abrir os botões da camisa dele. Quando ele tirou a calça, ela viu o corpo jovem, firme, pronto. Mas não havia arrogância. Havia entrega.
Deitaram-se na cama com cuidado. Os lençóis deslizaram pelos corpos. Friedrich deitou-se sobre ela, beijando cada linha do rosto, como se pedisse permissão.
Greta abriu as pernas devagar, puxando-o para si.
O primeiro movimento foi lento, encaixado como respiração. Um sussurro de prazer escapou dos lábios dela. Os quadris se moviam em compasso. As mãos dele exploravam suas costas, seus ombros, sua nuca.
Ela gemeu mais alto ao sentir-se preenchida por completo. As unhas cravadas nos ombros dele. Os olhos abertos, fixos nos dele.
O prazer subia como uma onda quente. Friedrich sabia ouvi-la, guiá-la. Tocava o clitóris com dedos experientes e suaves, enquanto a penetrava com precisão e ritmo.
Ela veio em silêncio, mordendo o próprio lábio, o corpo inteiro tremendo. E ele esperou. Beijou-lhe o ventre, os seios, e a penetrou de novo, mais fundo, com mais força, até que ela se entregasse outra vez — agora gritando seu nome contra a almofada.
Ele gozou por fim, dentro dela, ofegante, colado ao pescoço. Os dois suavam, os corpos grudados, a respiração em uníssono.
Ficaram deitados por longos minutos. Friedrich acariciava-lhe os cabelos.
— Agora você sabe — disse ele.
— Sim — respondeu ela, de olhos fechados. — Agora eu sei.
— E isso muda tudo?
— Não. Só revela o que sempre esteve aqui. Debaixo da pele.
Ela virou-se de lado, colando o corpo ao dele.
— Não me peça promessas.
— Eu não quero promessas. Só quero estar contigo… mesmo que seja entre as frestas.
E naquela noite, Greta dormiu como não dormia há anos.
Sem culpa.
Sem disfarce.
Sem reservas.
Continua…
Capítulo 10 – Insubmissão
Por Clara Noir
Os primeiros raios de sol filtravam-se pela cortina entreaberta quando Greta acordou. O corpo ainda sentia a presença quente de Friedrich ao seu lado, mas a mente buscava outra coisa — um senso de liberdade, de escolha, de poder próprio.
Ela não era mais aquela mulher que se conformava com o destino traçado. Não apenas a biblioteca ou o noivo a definiriam. Ela começava a se redescobrir.
Naquela manhã, vestiu-se com cuidado, escolhendo um vestido azul-escuro de algodão leve, que a deixava à vontade, mas não menos elegante. No café da manhã, Peter estava já à mesa, lendo o jornal com seu ar calmo e previsível. Sorriu para ela quando entrou, e ela respondeu com um beijo suave no rosto.
— Dormiu bem? — perguntou ele, a voz cheia de ternura.
— Melhor do que em muito tempo — respondeu, sentando-se.
Durante o dia, Greta sentiu-se mais leve. Fez pequenas mudanças na rotina: passou pela livraria da cidade e escolheu alguns volumes que sempre quis ler, sem se preocupar se agradariam a alguém. Encontrou-se com Caroline, sua aluna favorita, para conversar sobre literatura e, sem perceber, riu mais do que o habitual.
À noite, quando Peter voltou, ela o recebeu com um sorriso diferente — mais confiante, mais presente.
Eles fizeram amor de novo, mas dessa vez com uma nova intensidade. Greta não se calava mais; sussurrava desejos e limites, guiava Peter com firmeza e ternura. Peter, surpreso e encantado, descobriu uma mulher além da seriedade da bibliotecária — uma mulher viva e insubmissa.
Mas a mente de Greta também voava para Friedrich, para as palavras e toques dele que ainda ecoavam, para a promessa não dita.
Naquele fim de semana, Friedrich desapareceu da cidade. Nada respondeu às cartas dela. O silêncio dele cortava mais que qualquer palavra.
Ela não sentiu raiva, nem tristeza. Sentiu o mistério — uma tensão que ainda não sabia decifrar.
O triângulo permanecia aberto, mas algo já havia mudado para sempre.
Greta sabia que não voltaria atrás.
E, no fundo, não queria.
Fim da primeira parte.