Capítulo 1 — O Casamento de Sombras
O ano era 1800. Os campos de Northumberland estavam envoltos por névoa dourada quando Jonathan Altham se casou com Lady Arabella Wexford, filha única do influente lorde Reginald Wexford. A cerimônia, celebrada na antiga capela de pedra da propriedade Hollowell, foi tão fria quanto o mármore do altar.
Arabella vestia cetim marfim bordado com fios de prata. Seus olhos, azuis como um céu de inverno, estavam fixos em algum ponto além do noivo. Não havia sorriso em seus lábios finos — apenas o tédio disfarçado sob uma elegância imperturbável.
Jonathan, por outro lado, era um jovem gentil, educado nos salões de Oxford e herdeiro de um título sem fortuna. A união for a arranjada por conveniência: os Altham precisavam de dinheiro, os Wexford queriam respeitabilidade.
A primeira noite foi marcada por silêncio e ausência. Arabella dormiu sozinha, ordenando que lhe preparassem o quarto azul do segundo andar. “Não suporto colchões muito moles”, dissera, como quem recusa um vinho inferior.
A vida conjugal se instalou sob um teto frio. Jonathan, embora educado e paciente, logo percebeu que a esposa o via como um serviçal com título — nada mais.
A mansão Hollowell, herdada da mãe de Jonathan, era vasta e silenciosa, com salões de tapeçarias esmaecidas e janelas que encaravam campos úmidos e desolados. Os criados caminhavam em passos contidos, cientes de que Arabella exigia perfeição em tudo: o chá às quatro em ponto, as flores sempre frescas, e silêncio absoluto nos corredores após as nove.
Logo, começaram os sussurros.
Arabella passava horas com o novo cocheiro, um rapaz de vinte e poucos anos chamado Henry. Ele era moreno, rústico e insolente — tudo que Jonathan não era.
Numa manhã úmida de outono, Jonathan avistou a silhueta dos dois pelos vitrais do orquidário. Ela ria. Ria como nunca rira com ele. Uma gargalhada alta e lasciva.
Naquela noite, Jonathan não disse palavra. Sentou-se sozinho no gabinete, com um copo de conhaque barato e a sensação de estar sendo lentamente apagado da própria casa.
Do lado de fora a, a névoa cobria os campos como um lençol de esquecimento.
A mansão Hollowell repousava sobre um vasto campo de urzes, isolada por bosques e ladeiras, como se a própria terra evitasse aproximar-se demais daquela construção de pedra cinzenta. Herança materna de Jonathan, a propriedade era antiga, sólida, e repleta de sombras silenciosas.
Na ala leste, o tempo parecia ter parado. Os móveis permaneciam como estavam no tempo de sua mãe: poltronas de veludo vinho, espelhos em molduras douradas, cortinas pesadas com a poeira de décadas. Arabella, no entanto, raramente punha os pés ali. Achava a ala antiquada, “melancólica demais”, como dissera a uma das empregadas.
Ela preferia o lado sul, onde transformara um antigo salão em seu boudoir pessoal — um aposento de paredes forradas em seda azul, cortinas translúcidas que tremulavam com o vento, e espelhos altos que refletiam sua vaidade por todos os ângulos. Ali, Henry, o cocheiro, era frequentemente visto entrando com flores, livros ou cestas com frutas frescas do pomar.
O murmúrio da casa corria pelos corredores como brisa: ela estava tendo um caso com o criado.
Lady Arabella não se preocupava em disfarçar. Ignorava os olhares dos criados, especialmente os de Martha, a cozinheira de mãos largas e coração mole, que balançava a cabeça enquanto amassava a massa do pão. “Isso não vai acabar bem”, murmurava entre os dentes.
O mordomo Hargrove, um homem de sessenta anos, alto, sempre de paletó escuro impecável, observava tudo com a mesma expressão estoica que usava desde que servira à mãe de Jonathan. Porém, em seus olhos cinzentos, havia preocupação genuína. Ele via o senhor da casa — ainda tão jovem — afundando pouco a pouco.
Jonathan passava as tardes em seu gabinete, olhando a lareira apagada, garrafa de brandy sempre ao alcance. Lia jornais sem prestar atenção, escrevia cartas que jamais enviava. Era um homem lentamente engolido por uma tristeza úmida, daquelas que se alojam nos ossos.
Os dias em Hollowell se repetiam com o tédio cruel de uma peça mal ensaiada. Ao entardecer, ouvia-se a música do piano vindo do boudoir de Arabella, acompanhada de risos abafados.
Numa tarde chuvosa, Hargrove encontrou o corpo do jovem Henry sem vida, jogado atrás do estábulo, o pescoço quebrado, o rosto escondido na lama.
Lady Arabella alegou surpresa. Chorou de forma teatral, com lenço perfumado nas mãos. Disse que Henry era “apenas um criado que se metera em encrenca com os homens da vila”. E Jonathan… não disse nada.
Ele não acreditava — mas também não se importava mais.
Foi Hargrove quem limpou a cena com os outros criados, enterraram o corpo discretamente, com medo de escândalos. Arabella ordenou que o estábulo fosse limpo, pintado, e que ninguém mais falasse no assunto.
Mas Martha não esqueceu. Nem Jonathan.
Na noite seguinte, ele sonhou com Henry batendo em sua janela, o rosto coberto de lama e os olhos vítreos dizendo:
“Ela matou.”
Quando despertou, a garrafa de brandy estava vazia no chão e as janelas, bem fechadas.
Capítulo 3 — Véus de Escândalo
Após a morte de Henry, a mansão Hollowell mergulhou num silêncio espesso. Não o silêncio natural das casas antigas, mas um silêncio que parecia observar, escutar, respirar entre as paredes.
Jonathan mal saía do quarto. As cortinas do gabinete permaneciam fechadas por dias. A luz do sol não o visitava, e sua barba crescia desgrenhada, tornando-o irreconhecível para quem um dia foi o elegante herdeiro dos Altham.
Hargrove, fiel como uma sombra, trazia as refeições e as retirava intactas. Às vezes encontrava a taça de cristal caída, a bebida escorrendo pelos cantos da mesa. Em outras, Jonathan dormia debruçado sobre cartas rasgadas, manchadas de conhaque e lágrimas secas.
Apenas uma criada se atrevia a falar: Elsie, uma moça jovem, de cabelos cor de cobre e olhos cor de folha úmida. Tinha vindo da vila vizinha para ajudar Martha na cozinha. Sentia pena do patrão — um homem que parecia ter perdido a alma em algum lugar entre o altar e a garrafa.
Lady Arabella, por sua vez, não chorou mais. Com Henry enterrado em segredo, retomou sua rotina com impiedosa frieza. Recebia amigas da cidade, tomava chá no jardim, promovia pequenos jantares com cavalheiros da região — alguns deles claramente mais íntimos do que a decência permitiria.
Uma noite, já tarde, Jonathan desceu pela primeira vez em semanas. Estava pálido, o paletó desalinhado, e o olhar perdido. Entrou na sala de jantar sem ser anunciado e deparou-se com Arabella à mesa com dois homens: um banqueiro de Southampton e um capitão do exército. Ambos riam alto, com taças de vinho na mão. Arabella, sentada ao centro, exibia um decote mais ousado do que o habitual.
Ao vê-lo, ela não se levantou. Limitou-se a erguer uma sobrancelha.
— Olhem só, o espectro de Hollowell resolveu nos visitar — disse, com desprezo escorrendo entre as palavras.
Os homens tentaram se levantar, constrangidos, mas Jonathan já se virara. Saiu sem dizer uma palavra, como um cão ferido.
Naquela madrugada, foi a primeira vez que Arabella o agrediu.
Ele estava sentado no chão do gabinete, as costas encostadas na estante, uma garrafa semi-vazia ao lado. Arabella entrou com a mesma fúria gélida de uma tempestade de inverno.
— Seu fraco! — gritou. — Você não passa de um miserável inútil. Minha herança paga os telhados que não desabam nesta casa podre, e tudo que você faz é beber e lamentar?
Ele a olhou sem reagir.
— Responda, Jonathan!
Ela o esbofeteou com força.
Ele cambaleou para o lado, sem revidar. Apenas sussurrou:
— Você o matou… a Henry. E matou algo em mim também.
Arabella riu. Um riso baixo, perigoso.
— Henry era um tolo apaixonado. Acha mesmo que eu o amava? Era apenas carne jovem. Um brinquedo. E quando ameaçou falar demais, fiz o necessário.
Jonathan tentou se levantar, mas ela o empurrou de volta.
— Você é patético. Eu sou a única razão desta casa ainda não ter sido tomada por credores. E ainda assim, acha que pode me acusar de algo?
Ela cuspiu aos pés dele.
E então, saiu, os saltos estalando no chão como trovões secos. Jonathan permaneceu no chão por horas, encarando o vazio.
Na manhã seguinte, Elsie o encontrou desacordado, com os nós dos dedos cortados e sangue seco sob o nariz.
— Senhor Altham…? — ela sussurrou, ajoelhando-se. — Pelo amor de Deus, levante-se. Isso aqui não é fim de ninguém…
Ele abriu os olhos devagar. Havia ali um fragmento de lucidez.
— Quem é você? — murmurou.
— Uma amiga, se o senhor me permitir.
Aquela foi a primeira vez que Jonathan olhou para alguém com um fiapo de esperança desde o casamento.
O escândalo, embora ainda oculto pelas aparências, já corria solto na vila. As conversas nas barracas do mercado sussurravam sobre a “nobre enlouquecida” e o “senhor alcoólatra da mansão”. Havia quem dissesse que fantasmas rondavam Hollowell. Outros, que o diabo em pessoa usava vestidos de seda azul.
Mas não eram fantasmas. Era Arabella.
E a tempestade estava apenas começando.
As semanas que se seguiram ao confronto com Arabella foram como um outono interminável na alma de Jonathan. Cada manhã era cinzenta, cada noite, um copo a mais. A garrafa tornou-se sua única companhia constante — silenciosa, fiel, impiedosa.
A vila de Highmoor, situada a pouco mais de três milhas da propriedade, começou a comentar. Jonathan, outrora o jovem de modos corteses e discurso culto, agora era visto cambaleando pelas vielas, os cabelos desalinhados, o sobretudo amarrotado. Alguns ofereciam ajuda; outros riam às escondidas. Os mais antigos balançavam a cabeça, murmurando:
— Tinha tudo pra ser um grande homem… até casar-se com aquela bruxa de Hollowell.
Na casa grande, a decadência era visível. Arabella passava a maior parte do tempo nos aposentos do sul, entretendo-se com visitas suspeitas e cartas misteriosas. Hargrove cuidava sozinho dos livros de contas, mantendo as aparências da propriedade com o rigor de um lorde silencioso. A criadagem andava em alerta constante, temendo os surtos de raiva de Arabella, que agora variavam entre humilhações públicas e quebras de porcelana.
Martha, a cozinheira, tinha medo de ser dispensada, mas não deixava de preparar discretamente infusões calmantes para Jonathan — que raramente as tomava.
Era Elsie quem o observava com olhos atentos. Às escondidas, deixava pão fresco, toalhas limpas e livros à porta de seu quarto. Não por dever, mas por pena. Ou talvez… algo mais.
Foi durante um jantar na casa do reverendo que Jonathan teve sua primeira grande queda pública.
Arabella insistira para que fossem. Queria exibir seu novo vestido de veludo esmeralda, feito sob medida por uma modista de Londres. Jonathan foi, derrotado, com os olhos avermelhados e o cheiro forte de conhaque impregnado na gola.
A sala estava repleta de gente influente: magistrados, esposas de comerciantes, jovens senhoras da paróquia. Arabella desfilava entre eles como um cisne venenoso. Jonathan, sentado no canto da sala, apenas sorvia seu cálice com pressa.
— Senhor Altham, vosso vinho está… forte? — comentou uma das damas, ao notar sua terceira taça esvaziada em poucos minutos.
Jonathan ergueu o olhar, riu brevemente — um riso amargo — e respondeu:
— Não tão forte quanto minha vontade de sumir daqui.
Arabella, que ouvia de perto, esmurrou a mesa com os dedos enluvados e sibilou:
— Controle-se, ou juro que o deixo dormindo na lama esta noite.
Ele se levantou com dificuldade, tentou dar dois passos, tropeçou no tapete e caiu, derrubando a toalha e um candelabro. O vinho espalhou-se pela mesa, respingando em um velho juiz que saltou da cadeira, indignado.
O silêncio foi sepulcral.
Arabella fingiu não conhecê-lo.
Na manhã seguinte, Jonathan acordou no estábulo, com palha grudada ao rosto e a cabeça latejando como mil sinos. Ao seu lado, uma manta dobrada — e sobre ela, uma tigela com caldo morno.
Hargrove havia mandado buscar ajuda? Não.
Foi Elsie.
Ela o esperava do lado de fora, sentada em um banco de pedra, tricotando com a simplicidade de quem não esperava nada. Quando o viu, levantou-se e disse, com voz suave:
— Bom dia, senhor Altham. A sopa ainda está quente. Fiz com alho-poró do jardim e um pouco de tomilho… espero que goste.
Jonathan encarou a jovem por longos segundos. Seus cabelos ruivos estavam presos de forma desleixada, e o avental tinha uma mancha de manteiga. Mas havia algo em sua presença que lembrava um lar antigo. Um tipo de calor que ele não sentia desde a infância.
— Obrigado… Elsie.
Ela sorriu, e foi embora sem esperar elogios.
Naquele instante, Jonathan soube: alguém via nele mais do que um bêbado, mais do que um fracassado.
Alguém o via como homem.
Enquanto isso, Arabella não ignorava a aproximação. Observava pelos corredores, pelas frestas, pelos reflexos dos espelhos que tanto amava.
Elsie não era uma ameaça à altura — mas seria um incômodo.
E Arabella não tolerava incômodos.
Nos dias seguintes, seus ataques verbais contra os criados se intensificaram. Mandou demitir um jardineiro por “caminhar ruidosamente”, ameaçou Martha de corte no salário e proibiu Hargrove de falar com o senhor da casa fora do horário “estritamente necessário”.
Havia algo crescendo dentro dela. Um desejo frio, feito navalha:
se não pudesse possuir Jonathan, ninguém mais poderia.
E o sangue de Henry… não seria o último.
Capítulo 5 — A Estranha no Campo
O outono recuava devagar, dando lugar a invernos suaves e manhãs brumosas. Hollowell ainda era um lugar silencioso, mas agora havia um perfume de pão fresco nos corredores, risos abafados na cozinha, e um nome que se repetia nos pensamentos de Jonathan: Elsie.
Não era uma mulher de muitos gestos. Tinha mãos firmes, cabelos sempre presos com uma fita desbotada e um modo de falar simples, direto. Mas havia uma ternura em seu silêncio — uma forma de olhar que não julgava, não exigia, apenas esperava.
Numa manhã em que Arabella viajara à cidade com suas amigas, Jonathan, pela primeira vez em meses, desceu para o café. Estava pálido, mais magro, mas com os cabelos penteados e a barba recém-aparada.
Martha soltou um leve suspiro ao vê-lo. Hargrove não disse uma palavra, mas preparou pessoalmente a bandeja de chá.
— Bom dia, senhor Altham — disse Elsie, colocando diante dele um prato com ovos e torradas amanteigadas.
— Bom dia… — respondeu ele, e depois de uma pausa: — Que bom ouvir minha casa com vida novamente.
Ela sorriu, e com um gesto tímido, disse:
— O senhor… gostaria de ver o pomar da fazenda de meu tio? Não fica longe. Talvez… o ar fresco faça bem.
A propriedade de Edgar Rowntree, o tio de Elsie, era simples: uma casa térrea de pedras, galinhas soltas no quintal e uma cerca de madeira coberta de hera. O pomar ficava nos fundos, onde pereiras, ameixeiras e macieiras se alinhavam sob o céu cinzento.
Jonathan caminhava entre as árvores com uma sensação esquecida — paz.
Elsie colhia maçãs num cesto trançado. Vestia um vestido marrom simples, com a barra levemente suja de terra. Nada nela lembrava os brocados de seda de Arabella, e era exatamente isso que tornava sua presença tão libertadora.
— Quando criança — disse Jonathan, tocando uma folha —, eu tinha um pomar parecido. Mas meu pai vendeu tudo quando minha mãe morreu.
— O senhor… sente falta dela?
Ele hesitou.
— Todos os dias. Ela era a única pessoa que… realmente me via. Como você faz.
Elsie corou e baixou os olhos.
— Eu não sou ninguém, milorde.
— Está enganada — disse ele, com suavidade. — Você é tudo o que Hollowell esqueceu de ser.
Naquela tarde, ele ajudou a recolher frutas, carregou cestos, alimentou as galinhas. Riu. E riu com verdade.
Eliza — a vizinha do pomar e amiga de infância de Elsie — comentou com espanto:
— O senhor Altham? Aquele da mansão Hollowell? Pois não é que parece… humano?
Nos dias seguintes, Jonathan passou a visitar a fazenda com mais frequência. Às vezes ajudava com pequenos consertos, às vezes apenas sentava sob a figueira e escutava Elsie contar histórias da vila. Ela era leve, feita de coisas pequenas e essenciais. Não fazia perguntas difíceis, não o lembrava de sua falência moral — apenas o acolhia com simplicidade.
Certa tarde, enquanto a chuva tamborilava no telhado da cozinha, Jonathan se debruçou sobre a mesa rústica e disse:
— Você sabia que, quando Arabella sorri, não sorri com os olhos?
Elsie ergueu o olhar, surpresa.
— Mas você sorri com o corpo inteiro. Até as mãos.
Ela ficou vermelha, mas não desviou os olhos.
— E você… senhor Altham… voltou a respirar.
Naquela noite, quando Jonathan retornou a Hollowell, encontrou Arabella sentada em seu boudoir, os cabelos soltos, a taça de vinho esquecida nas mãos.
— Onde esteve? — perguntou, sem emoção.
— Nos campos.
— Com ela?
Ele não respondeu.
— Você é patético — disse, com um sorriso torto. — Se acha que vai encontrar paz nos braços de uma criada… está mais perdido do que eu pensava.
— E ainda assim, é nos braços dela que encontrei algo que você nunca me deu — respondeu ele, com firmeza.
Ela jogou a taça contra a parede. O vidro se estilhaçou.
— Pois saiba, meu querido Jonathan — sibilou, com os olhos arregalados —, que não vou deixar você escapar tão fácil.
E naquele instante, algo nela se rompeu. Arabella já não era apenas arrogante — era perigosa.
Ela começou a escrever cartas. Chamou um antigo conhecido, um homem de reputação duvidosa. E traçou um plano.
Na semana seguinte, Jonathan caiu do cavalo em um acidente suspeito. Felizmente, não se feriu gravemente.
Mas Elsie soube, pelos olhos de Arabella na janela, que aquilo não havia sido acidente.
E que o pior ainda estava por vir.
Na manhã seguinte ao acidente, Jonathan acordou com a perna enfaixada e a cabeça latejando. Martha o velava com olhos marejados e mãos aflitas, enquanto Hargrove se encarregava do médico da vila.
Elsie, no entanto, não apareceu no primeiro dia. Arabella ordenara que ela ficasse longe do quarto principal, ameaçando-a de demissão.
— Se ousar cruzar aquele corredor, garota, arrumo sua trouxa com as próprias mãos.
Mas no segundo dia, já no fim da tarde, Elsie entrou em silêncio, quando o sol se punha e as sombras tomavam os corredores como braços invisíveis.
Jonathan despertou ao som de sua voz.
— Trouxe lavanda e folhas de louro, para o inchaço…
— Você veio… — murmurou ele, os olhos ainda pesados.
— Eu sempre viria, senhor Altham.
Ela trocou as compressas, esfregou um unguento caseiro no tornozelo dele, e por um instante suas mãos se demoraram sobre a pele. Jonathan entreabriu os lábios, mas não disse nada. Apenas olhou para ela como quem encontra abrigo após uma tempestade longa demais.
— Obrigado. Por cuidar de mim. Por ver quem eu sou.
Ela sorriu, sem coragem de encará-lo por muito tempo.
— O senhor não precisa mais agradecer. Eu quero… cuidar.
Arabella, do alto da escada, os viu juntos. O calor na garganta subiu como fel. Vestia-se de veludo roxo, colar de safiras, e olhos fundos que já não escondiam sua obsessão.
Aquela criada miserável havia conquistado o que era seu por direito.
Naquela noite, sozinha em seus aposentos, Arabella escreveu três cartas. Uma foi enviada ao tio de Elsie, outra a um antigo oficial do exército que lhe devia favores… e a última, guardou consigo, como um veneno de emergência.
Nos dias que seguiram, Jonathan e Elsie passaram a se encontrar no pomar, discretamente. Hargrove fazia vista grossa. Martha, que sempre fingira ignorar, começou a deixar pães doces e bilhetes com recados triviais:
“Vai chover à tarde, levem capa.”
Era como se todos ali, exceto Arabella, tivessem escolhido a felicidade de Jonathan — como uma rebelião silenciosa contra anos de humilhação.
Em um desses encontros, sob a figueira que testemunhara tantas tardes, Jonathan tomou a mão de Elsie e disse:
— Eu acreditei que estava morto por dentro. Você… me devolveu o sangue. O gosto da vida.
Elsie sorriu, os olhos marejados.
— E o senhor… me ensinou que não sou invisível. Nunca fui.
Ele se inclinou e a beijou. Foi um beijo tímido, interrompido pelo vento que carregava folhas secas, mas cheio de verdade.
E naquele instante, entre o cheiro de maçãs, terra molhada e esperança, floresceu o que parecia impossível: amor em terreno queimado.
Mas nem todo amor brota sem custo.
No final daquela semana, Arabella apareceu na fazenda de Edgar Rowntree com uma carruagem preta e um sorriso de raposa.
— Vim buscar minha criada. Ela anda se esquecendo de suas obrigações.
O tio, homem bondoso, tentou argumentar.
— Minha sobrinha não é propriedade de ninguém. Trabalha na Hollowell por escolha.
— Então, escolha… demiti-la — respondeu Arabella, estendendo um envelope de papel grosso. Dentro, algumas notas generosas.
— E se não aceitar, posso fazer denúncias… sobre certas plantações… e contas não pagas à coroa.
Edgar estremeceu. Arabella sabia onde ferir.
Elsie retornou para Hollowell naquela noite, em silêncio, com o rosto pálido e as mãos trêmulas.
Jonathan, ao vê-la, perguntou:
— O que houve?
Ela apenas respondeu:
— Foi um aviso.
Nos corredores, Martha ouviu Arabella falar sozinha, em voz baixa e estranhamente doce, enquanto olhava para o próprio reflexo no espelho:
— Uma flor brotou onde não devia… mas eu mesma hei de arrancá-la. Raiz por raiz.
Capítulo 7 — Mentiras e Armas
O inverno chegara de forma seca, com geadas leves que tornavam os campos prateados ao amanhecer. Na mansão Hollowell, o frio parecia entrar pelas paredes, alojando-se nas costelas e nas decisões.
Jonathan e Elsie, mesmo discretos, já não conseguiam disfarçar os olhares demorados e os sorrisos roubados nos corredores. O rumor da relação já corria entre os criados, e Arabella sentia-se cercada — acuada dentro de sua própria casa.
Ela já não dormia. Andava pelos corredores como uma viúva em luto por algo que ainda não perdera, os olhos vermelhos de tanto vinho, os lábios ressecados de raiva contida.
Foi numa dessas madrugadas que ela soube: era hora de agir.
Na semana seguinte, uma carta chegou da cidade. Um convite para Jonathan comparecer a uma reunião de antigos colegas de Oxford, num solar afastado, a seis milhas de Hollowell. O mensageiro entregou a carta com selo oficial e assinatura de um ex-companheiro dos tempos universitários.
Jonathan hesitou — mas sentia-se forte o bastante para retornar à sociedade. Além disso, desejava, de algum modo, recuperar a honra que um dia tivera.
— Irei — disse a Elsie, com voz firme. — Chegou o tempo de deixar de rastejar e voltar a caminhar.
Ela o ajudou a escolher o casaco. Prendeu-lhe a gravata com mãos delicadas e, antes de ele subir na carruagem, o beijou na face.
— Volte inteiro — sussurrou.
O caminho até o solar cruzava uma trilha estreita por entre bosques espessos. Jonathan foi sozinho, como o convite indicava. Mas, ao chegar ao local, tudo estava deserto. Sem música. Sem criados. Sem luz.
A carruagem havia sumido. O cocheiro — que Arabella contratara apenas para aquela viagem — desaparecera estrada afora.
Jonathan bateu na porta do solar duas vezes. Silêncio.
E então percebeu: fora enganado.
Virou-se para retornar, mas ouviu o estalo.
Um galho.
Um movimento na sombra.
— Arabella…? — murmurou, desconcertado.
A resposta veio em forma de pólvora.
O tiro cruzou o ombro de Jonathan e o fez cair entre folhas e raízes.
— Eu te amei! — veio a voz dela, rouca, demente, do alto da colina. — Mesmo quando não merecia! Mesmo quando se arrastava feito um verme, eu o defendi, Jonathan!
Outro tiro. Errou por pouco.
— Mas agora você se arrasta para os braços de uma criada? Uma bastarda que cheira a curral?
Ele rastejou até um velho tronco, pressionando o ferimento.
— Você enlouqueceu, Arabella!
— Não, querido. Eu finalmente enxerguei! Enxerguei que você só serve para ser propriedade. Meu marido. Meu cão. Ou meu cadáver.
A arma falhou ao terceiro disparo. Arabella gritou e arremessou-a contra as pedras.
— Eu não vou permitir que me troque por aquela rata dos campos! Nunca!
Jonathan, sujo de terra e sangue, ergueu-se com esforço e olhou-a nos olhos.
— Você já me perdeu. Não por Elsie. Mas por tudo que você se tornou.
Arabella caiu de joelhos, os dedos cravando a terra, os cabelos desgrenhados balançando ao vento cortante. Chorava de forma estranha, como se risse e soluçasse ao mesmo tempo.
Foi assim que a encontraram, horas depois, quando a guarda, avisada por Hargrove, chegou com tochas. Ela não resistiu.
— Ele mentiu para mim… ele mentiu para todos nós…
Jonathan foi levado de volta à Hollowell, ensanguentado, mas vivo. Elsie chorou como uma esposa que perde e reencontra no mesmo dia.
Martha cuidou dos curativos. Hargrove tratou de todas as providências legais. Arabella foi presa e, em poucas semanas, diagnosticada com “perturbações severas da razão”.
Sua sentença não foi a forca — foi o isolamento.
No início da primavera, foi enviada ao Sanatório de Briar Hollow, uma construção gelada entre bosques e colinas, onde os loucos passavam a vida em silêncio, entre paredes cinzentas e visitas esparsas.
A última coisa que disse antes de ser levada foi:
— Ele ainda me ama. Ele ainda virá…
E de fato, viria.
Mas não como amante.
Como fantasma de um passado que jamais seria totalmente enterrado.
Capítulo 8 — Louca em Cativeiro
O Sanatório de Briar Hollow parecia uma fortaleza erguida entre árvores retorcidas e colinas cinzentas, onde o vento uivava como um lamento antigo. Suas paredes altas e frias guardavam segredos que poucos ousavam desvelar. Ali, a razão se perdia entre corredores vazios e quartos trancados.
Lady Arabella Wexford chegara envolta em mantos pesados, olhos vidrados e semblante desfeito. O brilho que um dia carregara — arrogante e cruel — havia sido consumido por semanas de solidão, vigílias e murmúrios.
No início, recusava-se a falar. Recusava-se a aceitar o destino traçado para ela. Gritava, rasgava roupas, ameaçava enfermeiros, delirava sobre fantasmas e traições.
Mas com o passar dos meses, os ataques foram raros, e ela passou a passar horas encarando o teto ou o chão, como se buscasse algo perdido.
Os visitantes eram escassos. A família Wexford cortara laços para preservar a imagem. Os amigos sumiram.
Exceto por um.
Jonathan Altham.
Enquanto isso, na vila, a notícia de Arabella enlouquecida causava suspiros e cochichos. Mas poucos sabiam da verdade: que ele, seu marido, ainda a visitava.
Jonathan, agora recuperado e com a perna curada, passava seus dias na modesta casa da fazenda com Elsie, que lentamente conquistava o respeito da vila. Seu sorriso sincero, sua dedicação e o amor que transbordava na simplicidade conquistavam até os mais céticos.
Mas havia sombras no coração de Jonathan, sombras que só o silêncio dos corredores frios do sanatório parecia dissipar.
Numa tarde fria de março, Jonathan atravessou o portão enferrujado do sanatório. Vestia um sobretudo escuro, os cabelos ainda desgrenhados, os olhos cansados, mas firmes.
Ao entrar, foi recebido por um enfermeiro gentil que o conduziu ao pequeno quarto onde Arabella ficava.
Ela estava sentada, olhando para a janela, as mãos entrelaçadas no colo, o rosto pálido e marcado.
Ao vê-lo, seus olhos se arregalaram por um instante, e então a confusão tomou conta. Levantou-se lentamente, as pernas trêmulas.
— Jonathan? — murmurou, a voz frágil, perdida entre lembranças e delírios.
Ele aproximou-se com cuidado, sentou-se ao lado dela, segurando suas mãos delicadas.
— Sou eu, Arabella. Vim como prometi.
Ela apertou a mão dele, como quem busca firmeza.
— Você… veio? — disse, quase sem acreditar.
Ele assentiu.
— Eu ainda… cuido de você.
Por horas, ficaram ali em silêncio, dividindo o peso de memórias quebradas. Não havia rancor, nem ódio. Apenas a triste aceitação do que foram e do que restou.
De volta à fazenda, Elsie preparava o jantar enquanto Jonathan pensava na fragilidade daquela mulher, sua ex-esposa, presa não só pelo sanatório, mas pelos próprios demônios.
E sabia que, apesar de tudo, era o único elo entre ela e o mundo.
Capítulo 9 — Promessa de Verão
O verão finalmente chegou a Northumberland com sua luz dourada e seus dias longos, aquecidos por um sol que parecia prometer renovação. As flores do pomar estavam em plena floração, espalhando um aroma doce que invadia os arredores da fazenda de Edgar Rowntree.
Jonathan e Elsie haviam decidido se casar. Não por necessidade, mas por desejo — um pacto silencioso de dois corações que se reconstruíam entre os escombros do passado.
A cerimônia foi simples, mas repleta de emoção. O reverendo da vila, um homem calmo e respeitado, conduziu o casamento sob o velho carvalho que dominava o quintal. Criados, vizinhos e poucos amigos próximos assistiram à união com sorrisos tímidos e lágrimas contidas.
Jonathan, vestido com um fraque azul escuro, fitava Elsie com um olhar que brilhava mais do que as safiras no colar de Arabella. Ela, de vestido branco simples, os cabelos presos por uma fita de cetim, segurava um buquê de flores silvestres colhidas na manhã daquele dia.
— Eu prometo ser seu porto seguro — disse Jonathan, segurando as mãos dela. — Na tristeza e na alegria, na saúde e na doença, enquanto o sol brilhar sobre este campo.
Elsie sorriu, olhos marejados.
— E eu prometo ser sua companhia fiel, seu lar e sua força.
Foi um momento de pura magia, que parecia curar feridas invisíveis.
Mas a paz ainda era frágil.
Jonathan não se esquecia de Arabella, da loucura que a consumia e da sombra que ainda pairava sobre Hollowell. Ainda visitava o sanatório, e as notícias sobre sua ex-esposa chegavam sempre como um sussurro inquietante.
Enquanto isso, a vila começava a aceitar a nova esposa do senhor da casa, e o casal construía uma rotina de simplicidade e amor verdadeiro. Jonathan redescobria o prazer de um jantar quente, a leveza de uma risada sincera, e a esperança em um amanhã.
Certa tarde, enquanto caminhavam pelo pomar, Elsie segurou a mão de Jonathan e perguntou:
— Você acha que ela algum dia vai esquecer?
Ele parou, olhando o horizonte.
— Não sei. Mas aprendi que o passado é como estas árvores: às vezes precisa ser podado para que possa florescer novamente.
Elsie sorriu, e juntos seguiram pelo caminho, onde as flores balançavam ao vento, prometendo dias melhores.
Capítulo 10 — Silêncio nas Estufas
A primavera já dava seus primeiros sinais no interior de Northumberland. As estufas da propriedade Hollowell, antes esquecidas, começavam a receber o cuidado delicado de Elsie. Pequenas mudas de flores e ervas aromáticas brotavam entre os vasos, prometendo vida nova.
Jonathan passava cada vez mais tempo ali, longe do salão nobre e das sombras que ainda rondavam os corredores antigos. Ele caminhava entre as plantas, sentindo o cheiro úmido da terra fresca, e a leveza que Elsie trazia consigo, como um sopro de ar puro.
Numa tarde tranquila, ele decidiu fazer a última visita a Arabella no Sanatório de Briar Hollow.
O quarto dela estava mais silencioso que o habitual. Ela estava sentada perto da janela, a luz dourada do sol tocando seu rosto pálido e marcado pelo tempo.
Ao vê-lo, seus olhos se iluminaram com uma mistura de reconhecimento e paz.
— Jonathan… — sussurrou ela, a voz frágil mas clara.
Ele se aproximou e segurou suas mãos enrugadas.
— Vim dizer adeus, Arabella. Não com rancor, mas com compreensão. O passado não pode nos prender para sempre.
Ela sorriu, um sorriso doce e triste.
— Eu sei. Sempre soube que você era melhor do que eu merecia.
Eles ficaram ali em silêncio, compartilhando o espaço e o tempo, até que a enfermeira entrou para anunciar a visita havia terminado.
Jonathan levantou-se devagar.
— Adeus, Arabella. Que encontre a paz que tanto buscou.
Naquele instante, sentiu que uma parte pesada de sua alma finalmente se desprendia.
De volta à fazenda, Elsie esperava-o com um abraço quente e um olhar cheio de esperança.
A vida continuava, com suas dores e alegrias, mas agora havia espaço para o recomeço.
As flores nas estufas floresciam, assim como o amor e a coragem de quem escolheu seguir em frente.
Fim
Por Clara Noir para o blog Romance Vampiros.
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